José Serra |
A imprensa, a oposição e os meios jurídicos têm enfatizado o caráter perverso da tentativa do governo de estabelecer o sigilo dos preços máximos de obras que balizam a apresentação de propostas nas concorrências públicas. O Planalto se defende dizendo que esse sigilo criaria mais incerteza para as empresas concorrentes, dificultando eventuais conluios entre elas. Assegura-se, ainda, que os referidos preços seriam registrados pelos órgãos de controle — presumo que sejam os tribunais de contas.
Sinceramente, não consigo compreender por que essa medida produziria ganhos significativos para o governo, mas posso, sim, entender o valor que teria um vazamento seletivo de informações para o setor privado, a manipulação a que isso se presta e o incentivo que representaria para a corrupção no governo. Do mesmo modo, não será difícil prever a sombra de suspeições que tornaria ainda menos transparente do que já é todo o processo de licitações de obras nas três esferas de governo no Brasil.
Digo “três esferas de governo” e mencionei acima “tribunais de contas”, no plural, porque as mudanças que o governo pretende na lei de licitações valerão ou acabarão valendo, também, para todos os estados e municípios do Brasil, cujos investimentos públicos, somados, são superiores aos do governo federal. Isso não tem sido levado em sua devida conta.
Outra mudança, alarmante, enfraquecerá ao infinito a possibilidade de fiscalização de obras, o controle da sua qualidade e dos seus custos. Isto porque o novo regime de concorrência elimina a necessidade da apresentação de projetos básicos para as obras licitadas e, evidentemente, de projetos executivos.
Mais ainda, acreditem: cada uma das empresas concorrentes pode apresentar o seu projeto, propor as suas soluções – um estádio quadrado, trapezoidal, espiralado, elíptico, oval, aéreo, subterrâneo —, que envolverão custos diferentes. E o poder público poderá escolher aquele de que mais gostar, mesmo que o preço seja mais elevado. Corresponde à liberdade que você teria, leitor, se estivesse construindo uma casa, com uma ligeira diferença: você estaria fazendo isso com o seu próprio dinheiro, não com o dinheiro dos contribuintes; você, sim, é livre para satisfazer o seu próprio interesse; o governo tem de atender ao interesse público.
O que começa a ficar claro é que as obras da Copa e da Olimpíada estão servindo de pretexto para a instauração de um sistema absolutamente arbitrário, que acabará valendo para todas as obras contratadas pelos poderes públicos no Brasil: de estradas em qualquer parte a projetos alucinados, como o do trem-bala. Com um aditivo: o ingresso no tal do Regime Diferenciado de Contratações Públicas terá um preço monetário ou político, ou ambos, evidentemente.
Creio que, apesar das críticas enfáticas de muitos, a abrangência do desastre institucional da medida provisória do governo federal está sendo subestimado. Esse verdadeiro tsunami jurídico nos levaria ao padrão das antigas republiquetas da América Central e Caribe, governos à moda Somoza ou Trujillo. Ou será que se imagina que o regime brasileiro poderá seguir o modelo chinês, onde, supostamente, o Estado é o patrão de tudo e faz uma hidrelétrica como os leitores fazem suas casas? Não custa notar: vigora lá uma ditadura. Felizmente, esse mal, ainda não temos aqui.
Publicado em O Globo em 29/06/2011
Nenhum comentário:
Postar um comentário