domingo, 3 de fevereiro de 2013

Estratégias para uma social democracia brasileira, por Daniel Gil

Construção de um tripé socialdemocrata contemporâneo, estratégico e abrangente
A atualização de uma agenda socialdemocrata para o país passa primeiro por estarmos a par do andamento da discussão em outros lugares do mundo, como também atentos a orientações e críticas, muitas vezes pertinentes, daqueles que defendem valores distintos dos nossos. Um conjunto de diretrizes, desse modo, pode ser gradativamente visualizado, e se mostra capaz de sustentar um discurso ideológico modernizante. O segundo passo é o entendimento sobre como essas diretrizes podem atuar na realidade brasileira. Muitas vezes o que era prioridade tornou-se acessório, e o que era um detalhe se torna fundamental.
O que pretendo demonstrar é que podemos construir um tripé socialdemocrata contemporâneo, estratégico e abrangente, podendo dar origem, na prática, a um sem-número de políticas públicas com direcionamento claro. A competitividade, a inclusão pública e as liberdades individuais são as hastes principais, desde que sempre funcionem como causas da ética e da sustentabilidade.
COMPETITIVIDADE
Ao longo de muitos anos os brasileiros sofreram as consequências de dois cancros nas estratégias de Estado, quanto mais danosos nos anos de 1980 e princípio dos anos de 1990. A desordem fiscal e monetária era o mais inequívoco e seus danos saltavam diretamente à vista de todos. O outro, não menos danoso, era o medo de competir. Muitas reformas foram necessárias, com as quais estava a remodelação de parte dos valores constituídos na formação política das lideranças do país. O Plano Real foi o marco maior entre todas as reformas.
A saúde econômica e o início da inserção do Brasil na competição global se tornaram, em médio prazo, as maiores evidências de que a riqueza é gerada pelo cidadão, que o maior motor do desenvolvimento é a sociedade e que cabe ao Estado garantir o ambiente mais propício à viabilidade dessa geração de riqueza. A partir de reformas ainda basilares, os brasileiros, especialmente os mais pobres, puderam produzir mais qualidade de vida a si próprios. O Estado brasileiro ganhou, com isso, arrecadação e poder de investimento capazes de estimular ações de incentivo e inclusão.
Mas a continuidade dessas transformações esbarrou na intuição enganosa de que ações de governo são capazes de gerar riqueza. Baixar juros e estimular o crédito, por exemplo, são benéficos desde que a capacidade produtiva da sociedade esteja a ponto de acompanhar o consumo. Caso contrário, haverá pressão inflacionária e endividamento. A realidade é mais dura quando se trata do mercado internacional, onde há competição entre países mais desenvolvidos e de economia mais fluida. Um projeto de Estado competitivo, pois, deve preparar o cidadão e o caminho a ser trilhado. Investir em infraestrutura, por exemplo, deve substituir a concessão de subsídios a setores específicos da produção. O subsídio promove injustiças e desigualdade, premia a ineficiência e pode oferecer relações indevidas entre o público e o privado. Por sua vez, o investimento em energia, boas estradas, portos e aeroportos é democrático, universal, não escolhe a quem beneficiar.
A burocracia e os impostos precisam ser minimizados em todo o investimento produtivo. É ilusório acreditar que, ao taxar a produção, o Estado redistribui renda. Esses impostos descem em cascata até a base da pirâmide social, e quem acaba os custeando são os mais pobres; inviabilizam os produtos produzidos no mercado internacional e dificultam a ascensão de novos empreendimentos concorrentes no mercado interno.
Ao lado da competitividade devem sempre andar juntos: educação e consciência ambiental. Nada se fez tão importante quanto à educação, a partir do entendimento de que o cidadão é o eixo fulcral da geração de riqueza. O ensino de base, de resultados recentes alarmantes, deve ser gerido com prioridade e emergência, e servir de mola propulsora do potencial individual.  Escola integral democraticamente orientada, valorização dos professores e mérito remunerado são, mais que programas, valores. O Estado brasileiro, quanto ao ensino superior, precisa mediar o diálogo entre universidade e sociedade, aproximando-os. A consciência ambiental, por sua vez, aponta para ações de preservação que precisam ser indissociáveis do desenvolvimento. E o direito dos produtores, de contar com as melhores condições possíveis ao seu negócio, subentende o dever que têm de avançar com tecnologias cada vez mais limpas, garantindo sustentabilidade.
INCLUSÃO PÚBLICA
Há alguns anos o conceito de inclusão vem reorientando o conceito de igualdade tradicionalmente defendido pelos socialistas. Os princípios meritocráticos, reconhece Anthony Giddens, são relevantes e podem redefinir o antigo ideário em vez de exauri-lo. “A nova política defende a igualdade como inclusão e a desigualdade como exclusão”, e o desejável “refere-se, em seu sentido mais amplo, a cidadania, direitos e obrigações civis e políticos que todos os membros de uma sociedade deveriam ter, não apenas formalmente, mas como uma realidade de suas vidas”.
A ideia da inclusão social como instrumento de redução da desigualdade apontou, de alguma forma, para os anseios de justiça aclamados pela esquerda como também para o modelo da igualdade de oportunidades defendido à direita. Sua realização, entretanto, não se voltou para o sentido mais amplo e por isso frustrou-se repetidamente na promoção da cidadania, de uma consciência pública em favor da coletividade. Fez do espaço coletivo, ao contrário, um objeto de estigma do qual o cidadão mais pobre espera um dia ter condições de sair, de se autoexcluir. As elites, por sua vez, ganharam mobilidade e perspectivas cada vez mais globais, observa Christopher Lasch, e se recusam a aceitar limites ou vínculos comunitários “que abranja tanto o passado quanto o futuro e que esteja baseada na consciência de obrigações entre uma geração e outra”. “Enviam seus filhos para escolas particulares, protegem-se de emergências médicas ingressando em planos de saúde sustentados pelas empresas, e contratam guardas de segurança privada para protegê-los da crescente violência que os ameaça. Na verdade, afastaram-se da vida comum”.
Uma política de interesse público não deveria duvidar da meritocracia como agente de riqueza e desenvolvimento, mas, de acordo com Mickey Kaus, deve “restringir as esferas da vida em que o dinheiro significa muito”, “criar uma esfera de vida em que o dinheiro seja desvalorizado”. A inclusão pública como nova ideia quer uma vida civil abrangente e acessível a todos por meio da reconstrução e da universalização do espaço público. Políticas de Estado devem objetivar uma sociedade integrada e coletivamente responsável, e os governos, priorizar instituições e ações de caráter universal. Desde a garantia de segurança nas praças à excelência dos serviços de saúde, uma parcela importante da vida civil pode figurar à parte da competição e da desigualdade, e instigar na totalidade dos cidadãos o cuidado comunitário.
O desenvolvimento de uma consciência cidadã tem como preceito a responsabilidade do indivíduo em benefício de seus direitos. Os direitos e os deveres precisam sempre andar juntos para que a nação se sustente e seja uma expressão do trabalho de todos. O antigo modelo socialdemocrata tendia a tratar os direitos como exigências incondicionais e, desse modo, esteve perto de enterrar seus valores quando posto frente-a-frente com os resultados que o individualismo e o fundamentalismo de mercado crescente apresentavam ao mundo. Uma vez que o individualismo meritocrático demonstrou resultados econômicos que não podem ser desprezados, agregá-lo com responsabilidades individuais capazes de gerar amplos espaços coletivos de igualdade será a tarefa distintiva de um moderno Estado socialdemocrata.
LIBERDADES INDIVIDUAIS
A liberdade de importância política é a que resulta do entendimento acerca da natureza e dos limites do poder que a sociedade deveria legitimamente exercer sobre o indivíduo. É a liberdade civil ou social, devidamente distinguida por John Stuart Mill da liberdade de arbítrio; possibilidades individuais que atravessam a História sempre favoravelmente ao bem-estar e ao pensamento, assim como inevitáveis na contramão da miséria e das pressões opostas à diferença, sejam exercidas pela autoridade ou pela coletividade.
A política da Social Democracia, fundada com bases no igualitarismo, precisa se renovar reconhecendo que muito de suas opções no passado acabaram por incompatibilizar igualdade e liberdade. Segundo Mauricio Rojas, o avanço do Estado na Suécia do século XX fez com que, nos anos de 1990, a própria Juventude Socialdemocrata se rebelasse contra a presença do governo na vida civil, que a essa altura já tomava 70% do trabalho sueco em tributos e já não se furtava em pormenores das escolhas individuais. A nova política, ao contrário, não apenas deve incluir as liberdades individuais no conjunto de seus valores, mas defini-las como uma de suas principais estratégias de transformação social.
Sem deixar à margem o desenvolvimento econômico proporcionado pela liberdade do indivíduo de empreender, de acessar capital e bens de consumo, é preciso salientar que será as liberdades de âmbito moral ou comportamental a pauta entre as discussões políticas de maior interesse da sociedade. O direito ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, aparece como um avanço relativamente óbvio a ser conquistado, já que não interfere de modo nenhum na liberdade dos não envolvidos. O direito à oposição das igrejas, por sua vez, é inalienável. Seria o contrário um atentando à liberdade religiosa e de expressão, quanto mais lhes obrigar a feitura de um casamento religioso como querem alguns ativistas de extrema-esquerda. O que há de especialmente mau em silenciar a expressão, explica Mill, é que, “se a opinião é correta, privam-nos da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se errada, perdemos a percepção mais clara da verdade, que surge de sua confrontação com o erro”. “A completa liberdade de contradizer e desaprovar nossa opinião é a única condição que justifica pressupormos que ela seja verdadeira para os propósitos da ação; e não há outra forma de ter segurança racional de se estar certo”. A mesma lógica aplica-se à liberdade de informação e imprensa, alvo primeiro do autoritarismo contemporâneo.
A discussão sobre o uso de drogas deveria associar-se também à orientação das liberdades individuais. Isso equivale, em contrapartida, a um aumento da responsabilidade civil quanto a suas consequências. A ilegalidade praticada sob o efeito de drogas não deveria ser um atenuante, mas um agravante. No mais, o combate ao vício é mais eficiente se mais próximo das instituições de saúde que de segurança pública, como ficou constatado na proibição da bebida alcoólica nos Estados Unidos na década de 1920, que resultou na propagação do tráfico e do consumo descontrolado.
Atualmente é importantíssimo observar que, em nome das liberdades individuais, as elites e uma parte considerável da classe média por elas influenciada têm atuado, paradoxalmente, na patrulha do livre exercício individual. A falta de compreensão de que existem limites éticos e naturais para a engenharia social reside na essência de seus preceitos.   Incorporam um estilo de vida que inclui academias, cartas nutricionais esotéricas e se submetem a uma repressão voluntária por meio de um código moral “politicamente correto”. Querem sanear a sociedade por meio de opções linguísticas e de um ambiente livre de fumantes, espantados com o fato de que o cidadão médio não demonstre entusiasmo com o seu conjunto de valores. Operam politicamente sustentados por uma suposta superioridade moral, social, intelectual e comportamental, gerando intolerância e hostilidade a despeito das virtudes libertárias que alegam possuir. A política necessária, contudo, entende que ninguém pode ser legitimamente compelido a fazer ou deixar de fazer algo que a sociedade considera ser o melhor para ele.

Daniel Gil é diretor do ITV-RJ e vice-presidente da JPSDB-Rio

http://danielgil.com.br/

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