Construção de um tripé socialdemocrata contemporâneo, estratégico e abrangente
A atualização
de uma agenda socialdemocrata para o país passa primeiro por estarmos a
par do andamento da discussão em outros lugares do mundo, como também
atentos a orientações e críticas, muitas vezes pertinentes, daqueles que
defendem valores distintos dos nossos. Um conjunto de diretrizes, desse
modo, pode ser gradativamente visualizado, e se mostra capaz de
sustentar um discurso ideológico modernizante. O segundo passo é o
entendimento sobre como essas diretrizes podem atuar na realidade
brasileira. Muitas vezes o que era prioridade tornou-se acessório, e o
que era um detalhe se torna fundamental.
O que pretendo demonstrar é que
podemos construir um tripé socialdemocrata contemporâneo, estratégico e
abrangente, podendo dar origem, na prática, a um sem-número de políticas
públicas com direcionamento claro.
A competitividade, a inclusão pública e as liberdades individuais são
as hastes principais, desde que sempre funcionem como causas da ética e
da sustentabilidade.
COMPETITIVIDADE
Ao longo de muitos anos os
brasileiros sofreram as consequências de dois cancros nas estratégias de
Estado, quanto mais danosos nos anos de 1980 e princípio dos anos de
1990. A desordem fiscal e monetária era o mais inequívoco e seus danos
saltavam diretamente à vista de todos. O outro, não menos danoso, era o
medo de competir. Muitas reformas foram necessárias, com as quais estava
a remodelação de parte dos valores constituídos na formação política
das lideranças do país. O Plano Real foi o marco maior entre todas as reformas.
A saúde econômica e o início da
inserção do Brasil na competição global se tornaram, em médio prazo, as
maiores evidências de que a riqueza é gerada pelo cidadão, que o maior
motor do desenvolvimento é a sociedade e que cabe ao Estado garantir o
ambiente mais propício à viabilidade dessa geração de riqueza. A partir
de reformas ainda basilares, os brasileiros, especialmente os mais
pobres, puderam produzir mais qualidade de vida a si próprios. O Estado
brasileiro ganhou, com isso, arrecadação e poder de investimento capazes
de estimular ações de incentivo e inclusão.
Mas a continuidade dessas
transformações esbarrou na intuição enganosa de que ações de governo são
capazes de gerar riqueza. Baixar juros e estimular o crédito, por
exemplo, são benéficos desde que a capacidade produtiva da sociedade
esteja a ponto de acompanhar o consumo. Caso contrário, haverá pressão
inflacionária e endividamento. A realidade é mais dura quando se trata
do mercado internacional, onde há competição entre países mais
desenvolvidos e de economia mais fluida. Um projeto de Estado
competitivo, pois, deve preparar o cidadão e o caminho a ser trilhado.
Investir em infraestrutura, por exemplo, deve substituir a concessão de
subsídios a setores específicos da produção. O subsídio promove
injustiças e desigualdade, premia a ineficiência e pode oferecer
relações indevidas entre o público e o privado. Por sua vez, o
investimento em energia, boas estradas, portos e aeroportos é
democrático, universal, não escolhe a quem beneficiar.
A burocracia e os impostos precisam
ser minimizados em todo o investimento produtivo. É ilusório acreditar
que, ao taxar a produção, o Estado redistribui renda. Esses impostos
descem em cascata até a base da pirâmide social, e quem acaba os
custeando são os mais pobres; inviabilizam os produtos produzidos no mercado internacional e dificultam a ascensão de novos empreendimentos concorrentes no mercado interno.
Ao lado da competitividade devem
sempre andar juntos: educação e consciência ambiental. Nada se fez tão
importante quanto à educação, a partir do entendimento de que o cidadão é
o eixo fulcral da geração de riqueza. O ensino de base, de resultados
recentes alarmantes, deve ser gerido com prioridade e emergência, e
servir de mola propulsora do potencial individual. Escola integral
democraticamente orientada, valorização dos professores e mérito
remunerado são, mais que programas, valores. O Estado brasileiro, quanto
ao ensino superior, precisa mediar o diálogo entre universidade e
sociedade, aproximando-os. A consciência ambiental, por sua vez, aponta
para ações de preservação que precisam ser indissociáveis do
desenvolvimento. E o direito dos produtores, de contar com as melhores
condições possíveis ao seu negócio, subentende o dever que têm de
avançar com tecnologias cada vez mais limpas, garantindo
sustentabilidade.
INCLUSÃO PÚBLICA
Há alguns anos o conceito de
inclusão vem reorientando o conceito de igualdade tradicionalmente
defendido pelos socialistas. Os princípios meritocráticos, reconhece
Anthony Giddens, são relevantes e podem redefinir o antigo ideário em
vez de exauri-lo. “A nova política defende a igualdade como inclusão e a
desigualdade como exclusão”, e o desejável “refere-se, em seu sentido
mais amplo, a cidadania, direitos e obrigações civis e políticos que
todos os membros de uma sociedade deveriam ter, não apenas formalmente,
mas como uma realidade de suas vidas”.
A ideia da inclusão social como
instrumento de redução da desigualdade apontou, de alguma forma, para os
anseios de justiça aclamados pela esquerda como também para o modelo da
igualdade de oportunidades defendido à direita. Sua realização,
entretanto, não se voltou para o sentido mais amplo e por isso
frustrou-se repetidamente na promoção da cidadania, de uma consciência
pública em favor da coletividade. Fez do espaço coletivo, ao contrário,
um objeto de estigma do qual o cidadão mais pobre espera um dia ter
condições de sair, de se autoexcluir. As elites, por sua vez, ganharam
mobilidade e perspectivas cada vez mais globais, observa Christopher
Lasch, e se recusam a aceitar limites ou vínculos comunitários “que
abranja tanto o passado quanto o futuro e que esteja baseada na
consciência de obrigações entre uma geração e outra”. “Enviam seus
filhos para escolas particulares, protegem-se de emergências médicas
ingressando em planos de saúde sustentados pelas empresas, e contratam
guardas de segurança privada para protegê-los da crescente violência que
os ameaça. Na verdade, afastaram-se da vida comum”.
Uma política de interesse público
não deveria duvidar da meritocracia como agente de riqueza e
desenvolvimento, mas, de acordo com Mickey Kaus, deve “restringir as
esferas da vida em que o dinheiro significa muito”, “criar uma esfera de
vida em que o dinheiro seja desvalorizado”. A inclusão pública como
nova ideia quer uma vida civil abrangente e acessível a todos por meio
da reconstrução e da universalização do espaço público. Políticas de
Estado devem objetivar uma sociedade integrada e coletivamente
responsável, e os governos, priorizar instituições e ações de caráter
universal. Desde a garantia de segurança nas praças à excelência dos
serviços de saúde, uma parcela importante da vida civil pode figurar à
parte da competição e da desigualdade, e instigar na totalidade dos
cidadãos o cuidado comunitário.
O desenvolvimento de uma
consciência cidadã tem como preceito a responsabilidade do indivíduo em
benefício de seus direitos. Os direitos e os deveres precisam sempre
andar juntos para que a nação se sustente e seja uma expressão do
trabalho de todos. O antigo modelo socialdemocrata tendia a tratar os
direitos como exigências incondicionais e, desse modo, esteve perto de
enterrar seus valores quando posto frente-a-frente com os resultados que
o individualismo e o fundamentalismo de mercado crescente apresentavam
ao mundo. Uma vez que o individualismo meritocrático demonstrou
resultados econômicos que não podem ser desprezados, agregá-lo com
responsabilidades individuais capazes de gerar amplos espaços coletivos
de igualdade será a tarefa distintiva de um moderno Estado
socialdemocrata.
LIBERDADES INDIVIDUAIS
A liberdade de importância
política é a que resulta do entendimento acerca da natureza e dos
limites do poder que a sociedade deveria legitimamente exercer sobre o
indivíduo. É a liberdade civil ou social, devidamente distinguida por
John Stuart Mill da liberdade de arbítrio; possibilidades individuais
que atravessam a História sempre favoravelmente ao bem-estar e ao
pensamento, assim como inevitáveis na contramão da miséria e das
pressões opostas à diferença, sejam exercidas pela autoridade ou pela
coletividade.
A política da Social Democracia,
fundada com bases no igualitarismo, precisa se renovar reconhecendo que
muito de suas opções no passado acabaram por incompatibilizar igualdade e
liberdade. Segundo Mauricio Rojas, o avanço do Estado na Suécia do
século XX fez com que, nos anos de 1990, a própria Juventude
Socialdemocrata se rebelasse contra a presença do governo na vida civil,
que a essa altura já tomava 70% do trabalho sueco em tributos e já não
se furtava em pormenores das escolhas individuais. A nova política, ao
contrário, não apenas deve incluir as liberdades individuais no conjunto
de seus valores, mas defini-las como uma de suas principais estratégias
de transformação social.
Sem deixar à margem o
desenvolvimento econômico proporcionado pela liberdade do indivíduo de
empreender, de acessar capital e bens de consumo, é preciso salientar
que será as liberdades de âmbito moral ou comportamental a pauta entre
as discussões políticas de maior interesse da sociedade. O direito ao
casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, aparece como
um avanço relativamente óbvio a ser conquistado, já que não interfere de
modo nenhum na liberdade dos não envolvidos. O direito à oposição das
igrejas, por sua vez, é inalienável. Seria o contrário um atentando à
liberdade religiosa e de expressão, quanto mais lhes obrigar a feitura
de um casamento religioso como querem alguns ativistas de
extrema-esquerda. O que há de especialmente mau em silenciar a
expressão, explica Mill, é que, “se a opinião é correta, privam-nos da
oportunidade de trocar o erro pela verdade; se errada, perdemos a
percepção mais clara da verdade, que surge de sua confrontação com o
erro”. “A completa liberdade de contradizer e desaprovar nossa opinião é
a única condição que justifica pressupormos que ela seja verdadeira
para os propósitos da ação; e não há outra forma de ter segurança
racional de se estar certo”. A mesma lógica aplica-se à liberdade de
informação e imprensa, alvo primeiro do autoritarismo contemporâneo.
A discussão sobre o uso de drogas
deveria associar-se também à orientação das liberdades individuais.
Isso equivale, em contrapartida, a um aumento da responsabilidade civil
quanto a suas consequências. A ilegalidade praticada sob o efeito de
drogas não deveria ser um atenuante, mas um agravante. No mais, o
combate ao vício é mais eficiente se mais próximo das instituições de
saúde que de segurança pública, como ficou constatado na proibição da
bebida alcoólica nos Estados Unidos na década de 1920, que resultou na
propagação do tráfico e do consumo descontrolado.
Atualmente é importantíssimo
observar que, em nome das liberdades individuais, as elites e uma parte
considerável da classe média por elas influenciada têm atuado,
paradoxalmente, na patrulha do livre exercício individual. A falta de
compreensão de que existem limites éticos e naturais para a engenharia
social reside na essência de seus preceitos. Incorporam um estilo de
vida que inclui academias, cartas nutricionais esotéricas e se submetem a
uma repressão voluntária por meio de um código moral “politicamente
correto”. Querem sanear a sociedade por meio de opções linguísticas e de
um ambiente livre de fumantes, espantados com o fato de que o cidadão
médio não demonstre entusiasmo com o seu conjunto de valores. Operam
politicamente sustentados por uma suposta superioridade moral, social,
intelectual e comportamental, gerando intolerância e hostilidade a
despeito das virtudes libertárias que alegam possuir. A política
necessária, contudo, entende que ninguém pode ser legitimamente
compelido a fazer ou deixar de fazer algo que a sociedade considera ser o
melhor para ele.
Daniel Gil é diretor do ITV-RJ e vice-presidente da JPSDB-Rio
http://danielgil.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário