José Serra |
Os escândalos no Ministério dos Transportes, que vêm dos oito anos do governo Lula, foram revelados por reportagem da revista Veja. Diga-se que a Controladoria Geral da União, órgão que depende da presidência da República, revelou ter acompanhado as irregularidades há algum tempo. Mas nada fez. Por quê?
Precisamente na semana dos referidos escândalos, o governo conseguiu aprovar, no Senado, depois da Câmara de Deputados, a Medida Provisória que alterou radicalmente a Lei 8666, de junho de 1993, que disciplina as concorrências públicas no Brasil.
Essa lei foi aprovada no governo Itamar Franco, depois de muito tempo de discussão detalhada no Congresso. Lembro-me bem disso, pois era líder do PSDB na Câmara e participei ativamente do processo. Tratava-se de uma lei perfeita? Claro que não, mas trouxe avanços. A experiência, desde aquele tempo, poderia ensejar boas reformas no texto se debatidas de forma transparente, por intermédio de um projeto de lei, e não por meio de uma Medida Provisória, cujo conteúdo original, aliás, tratava de outros temas. O pretexto é viabilizar as obras da Copa do Mundo de 2014, dada a enrolação dos últimos quatro anos, em que quase nada foi feito além do oba-oba publicitário e eleitoreiro do governo do PT.
Pois bem, a criação desse regime especial de concorrência, que chamei, em artigo publicado em “O Globo”, de Regime Diferenciado de Imoralidade Pública, trouxe coisas ruins, que só farão acelerar a cadeia produtiva das desconfianças, acusações e escândalos – e não só na esfera federal, mas também nas estaduais e municipais. De fato, passou meio batida a circunstância que o tal regime vai valer também para os 27 estados e milhares de municípios de todo o Brasil, e que terminará valendo para todas as obras, não apenas as destinadas diretamente à Copa e à Olimpíada.
Isso tudo mostra uma contradição nas ações da Presidência da República: de um lado, anuncia apurações e demissões. Do outro, impõe uma lei que institucionalizará práticas de imensos abusos com o dinheiro público.
O autor do projeto de lei que resultou na 8.666 é Luis Roberto Ponte, então deputado federal, um homem de espírito público e conhecedor do assunto. Ele era e é do PMDB gaúcho e encaminhou ao presidente do Senado, José Sarney, um artigo dramático sobre as mudanças no regime de licitações. Vale a pena ler o texto, que, diga-se, vai ao encontro (e além) do meu texto no O Globo. Aqui vão alguns trechos, mostrando como o RDC escancara as portas da corrupção ao legalizar a permissão para:
1) “tornar sigilosos os orçamentos das obras, mecanismo que, associado à desclassificação das propostas com preços inferiores a um valor mínimo, também mantido em sigilo até a abertura dos envelopes, era muito usado, antes da lei 8666, para direcionar uma obra pública ao parceiro escolhido, bastando ao governante utilizar um valor mínimo bem alto, e vazá-lo ao amigo preferido para garantir-lhe a vitória na licitação por preço tão elevado quanto desejassem, operação camuflada e simples;
2) usar critérios subjetivos no julgamento das propostas, a pretexto de nebulosos conceitos técnicos, ambientais e econômicos, que era outra forma ultra-eficaz de o governo alijar quem quisesse e entregar a obra a quem desejasse;
3) juntar, na mesma licitação, a realização do projeto e da obra, (tornando) impossível o indispensável julgamento objetivo, o que já enseja gravíssimas injustiças, sendo ainda mais grave terem colocado um mecanismo que permite dirigi-la ao companheiro escolhido apenas com o vazamento, a este, dos elementos da licitação, antes da publicação do edital, posto que o prazo de 30 dias estabelecido para entrega das propostas é incompatível com a simultânea confecção da proposta e de um projeto sério, e impossível de ser cumprido responsavelmente por quem não tenha tido anteriores informações privilegiadas.
4) pagar valores adicionais ao empreiteiro como prêmio por desempenho, qualidade, prazos, etc. (Art. 10), podendo-se imaginar o potencial de um governante inescrupuloso que disponha de um instrumento desses para aplicar em acréscimos subjetivos de pagamento em obras que somam bilhões de reais, e
5) acrescer o valor do contrato, sem qualquer limite (Art. 39), desrespeitando a barreira dos 25% estabelecida na lei 8666.” (artigo na íntegra aqui)
Acredite se quiser: essa é a lei que vai ser sancionada pela presidente Dilma na mesma época em que anuncia decisões e demissões em decorrência dos malfeitos no ministério dos Transportes.
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